-Luís, tô te ligando pra avisar que a Dina teve o bebê, um guri, estão bem, mas tem um problema feroz, tá me ouvindo?
-Estou.
-Sabe aquela peça que consegui pra eles? Pois o proprietário deu o ultimatum, eles têm até amanhã pra sair. O Alaor, marido dela, pediu pra eu falar contigo, te inteirar da situação. Escuta bem, não te falei nada, mas eu sei porque o cara quer que eles saiam. Aquele quarto vai virar um depósito de drogas. Como eu sei? Quanta ingenuidade, Luís, esqueceu que já trafiquei, conheço todo mundo, daqui até a Vila Cruzeiro e lá pros lados da Orfanotrófio. Era minha área. O que tu podes fazer?
Amanhã os três estarão na rua. De novo. Quase esqueço, a Dina quer fraldas. Ela pediu para te dizer que tem fralda para o dia e para a noite, não esqueça. Tem que ser meio a meio, fraldas diurnas e noturnas. Será que o xixi da criança muda da noite pro dia, é isso, Luís?
-Não vale a pena se preocupar com isso, querido. Providenciarei conforme o pedido. Já deram nome à criança?
– Hermes.
-Coisa do Alaor.
-Ele disse que é uma divindade multifuncional.
-Luís, aquela ração que tu me deste acabou, o cachorro, mesmo filhote, já é grande, comeu tudo, estou sem nada. Preciso pra já, te aguardo, meu irmão. Mas traz saco de vinte quilos, o bicho come muito!
-Está com quantos?
-Quatro.
-Todos desse porte?
-Os outros são pequenos. Vai trazer a ração? Estou respondendo ao interrogatório pra isso? Estou brincando, tu sabes. Tamojunto, meu irmão! Vou parar de trabalhar de flanelinha, vou entregar comida, de bicicleta, i food, uber eats,esses bagulhos, mas uma coisa tá pegando, não tenho bike. Tu podes fazer uma vaquinha pra eu comprar?
-Quanto custa uma bicicleta?
-Tem dos mais variados preços, mas a que estou namorando custa menos de setecentos reais, aro vinte e seis, vai me ajudar?
-Consigo trezentos reais. Vou falar com uns amigos e a gente compra sua bicicleta ainda esta semana. Deixa comigo.
-Cara, eu já te amava, agora…. Faço questão de inaugurar minha empresa levando uma comida pra ti.
-Vai aguentar pedalar até Viamão?
-Puta merda, esqueci. Então entrego no trabalho da tua esposa.
-Ela está trabalhando em casa. Vamos fazer o seguinte: estacionarei num determinado lugar, não muito longe, e farei o pedido, posso pedir nesse restaurante vegetariano aqui da Redenção?
-Pode.
-Então estamos combinados.
-Luís, acho que vou precisar de um celular…de cartão já resolve.
-Luís, desculpa te ligar, mas tu sabes, só ligo quando a situação é grave. Cara, tô sem nada, parece que as pessoas não andam mais pelas ruas, o albergue suspendeu as refeições que eles davam, disseram que só retornarão no dia quatorze de março. Até lá a gente se vira como dá. Consegue alguma coisa pra comer, e ração também, esqueceu de trazer o remédio contra as pulgas e os carrapatos? Essas pragas não esquecem dos meus cachorros, vão e voltam, vão e voltam.
-Onde você está?
-Na Ipiranga, no lugar de sempre, de noite fico na frente da farmácia. Cara, consegue umas roupas, a situação tá feia, acho que nunca foi assim. Vou te esperar.
-A prefeitura criou um espaço onde reuniu os moradores de rua, por que você não foi?
-Luís, tu conheces bem a gente, sabe que muitos usam crack, pra ficar no básico, agora tu imaginas todo mundo no mesmo espaço, sei que tem ocorrido brigas muito feias por lá. Mas ninguém fica sabendo, cá entre nós, quem se importa com o que acontece com moradores de rua, quem? Prefiro ficar onde estou, com meus cachorros, esses nunca me sacanearam. Lembra daquele parceiro que às vezes andava comigo, aquele que estava comigo um dia em que eu tinha acabado de fumar e tu chegastes? Caía uma chuva fininha e tu nos destes uns sanduíches, lembrou? Pois é cara, ele morreu semana passada. A gente estava fumando ali no barranco do arroio Dilúvio, mais ou menos meia noite. Conversamos um tempo, ajeitei uns panos para os cachorros dormirem. Horário não sei, mas a gente dormiu, acordei já tinha sol queimando e aquele movimento de sempre na Ipiranga. Chamei por ele, Edson…Edson…Edson…nada. Os cachorros começaram a latir, eles nunca fazem isso sem que se sintam ameaçados, incrível Luís, eles deitaram ao lado do Edson, me aproximei, cutuquei o cara…nada. Estava morto, Luís.
Peguei os cachorros e caí fora. Fiquei olhando de longe, muita gente passou e como sempre sequer olharam para o cara deitado no chão duro. Até que um cachorro sentou ao lado do cadáver e começou a uivar. Um gari se aproximou e percebeu a morte. Do momento que chegou a brigada, o SAMU, até retirarem o corpo, passaram seis horas e meia. Nem mesmo mortos merecemos atenção, tratamento respeitoso, nada disso. Será que enterraram ou jogam numa vala qualquer? Às vezes aparece corpo boiando aqui no arroio Dilúvio, praticamente no centro da cidade, não duvido, Luís, não duvido…Luís, desculpa, estou te fazendo gastar, hoje estou falante, acho que é fome. Consegue outra camisa do MRSC, a primeira que tu me deste se terminou, e olha que eu nem lavava pra não gastar. Gostei mais da preta. E pro inverno, vai fazer alguma coisa pra gente? Moletom, touca, gorro de lã, essas coisas…, mas, dessa vez imprime o endereço do site, assim facilita pra quem quiser doar. Te aguardo então. Ah! tá sabendo que nasceu o filho da Dina? O que tu achas dessa criança?
-Não conheço, fiquei sabendo dois telefonemas antes do seu, o Bugiu que me avisou.
-Cara, o Alaor não é bem certo da cabeça, pra ajustar as coisas, apanhou feito bicho quando esteve no presídio central, dois anos e meio. A Dina tu sabes como é, a criança na certa será doente da cabeça. Não gostei dos olhos dela, meio rasgadinhos, mas pode ser só impressão. Tomara que seja. Não esquece da ração. Lembra daquela vez que trouxeste uns biscoitinhos pra eles, pois é…