Por Jean Pico
De acordo com a Lei 7.767/96, todo último domingo do mês de novembro é Dia do lago Guaíba, que, neste ano de 2020, caiu no dia 29, dia do segundo turno da eleição municipal. Como se sabe, o Guaíba não é uma casa apenas para nós, porto-alegrenses, é também a casa para várias outras cidades e outras criaturas além dos humanos. Assim como todas as criaturas do planeta, nós precisamos de água para viver e, por isso, sempre buscamos viver perto de locais onde ela estivesse abundante. Se você conferir, as primeiras cidades foram construídas sempre perto de locais onde tivesse bastante água disponível. É o caso de Porto Alegre. Já reparou que o nome da capital gaúcha faz menção, ainda que indireta, ao Guaíba? Sim, porque se você está falando que é um porto, que é um local no qual as embarcações embarcam e desembarcam, é evidente que existe um curso de água grande, que, nesse caso, é o Guaíba. O nome também pressupõe que passar por esse porto traz alegria, mas a verdade é que, quanto mais pessoas passaram a morar em Porto Alegre, mais poluído o Guaíba ficou e, portanto, se pudesse expressar uma emoção, provavelmente não seria de alegria.
A poluição é uma consequência óbvia e direta do aumento populacional desenfreado, sem o devido acompanhamento da infraestrutura para comportar esse crescimento, mas não é a única. Outra consequência – menos evidente, mas não menos importante – é que a memória afetiva em relação ao Guaíba vai se distanciando do reconhecimento que um dia originou o próprio nome da cidade. O distanciamento histórico do porto-alegrense com o Guaíba começa justamente quando a percepção de sua relação com o lago passa a ser cada vez mais indireta e menos óbvia, ou seja, continuamos dependendo de suas águas como sempre, mas com cada vez menos consciência disso. O fato do Guaíba estar poluído e sem condições de balneabilidade não apenas limita o seu usufruto para o contato direto e o lazer, como também restringe a memória afetiva ao seu respeito. Quando uma mãe quer proteger seu filho e diz: “não toque nessa água, ela está suja e pode causar doenças”, isso às vezes é a única ou a última memória afetiva que a criança carrega em relação ao Guaíba. Na verdade, a maioria das crianças sequer cogitou que o Guaíba já foi limpo um dia, então como vão querer tomar banho em suas águas? Como sentir falta de fazer algo que você nunca fez?
O fato de não podemos tomar banho no Guaíba está longe de significar que não precisamos, e muito, dele! Entender que a água que está suja no lago é a mesma que chega potável em nossas casas significa entender como funciona o processo de saneamento básico, que também explica como a água ficou suja. A maioria das crianças cresce sem a oportunidade de usufruir diretamente das águas do Guaíba, pelo menos não sem a intermediação abstrata de canos e um tratamento que a deixa potável, dentro de padrões estabelecidos e pronta para chegar em nossas torneiras e ser bebida ou usada para a limpeza, mas ainda tão distante quanto o sol que nos acostumamos a ver se pôr refletido em suas águas. Encurtar a distância entre os porto-alegrenses e o Guaíba com certeza passa pela sua recuperação e, portanto, planejamento e investimentos gigantescos, mas não significa que não existe mais nada que possa ser feito enquanto isso não acontece. Muito pelo contrário.
Recuperar o Guaíba começa, fundamentalmente, pelas pessoas reconhecendo a sua importância, o que leva ao engajamento pelo seu cuidado. Inclusive, das crianças, que, se não pertencem à gama de pessoas que já desfrutaram do Guaíba, elas podem muito bem multiplicar e reforçar o coro e o lugar de fala daqueles que querem usufrui-lo agora e no futuro. Cuidar do Guaíba significa entender e respeitar a delicada, complexa e profunda conexão que existe e liga todas as criaturas que o fazem de casa. Mas, antes de qualquer coisa, cuidar do Guaíba significa vivê-lo conscientemente. Nem que seja através da fantasia e da arte, como propõe Alan Bari e sua turma. A questão é lembrar do Guaíba sempre com a preocupação de quem quer vê-lo recuperado, mas também com a alegria de quem sabe o que ele representa e das potencialidades que carrega. Somente assim, de fato, a cidade fará jus ao nome e esse Porto vai merecer ser chamado de Alegre. E, convenhamos, o Dia do lago Guaíba cair justamente no dia de uma eleição deveria ser bem mais do que uma coincidência.
Jean Pico é cartunista, pedagogo e autor infantil, criador de Alan Bari e a Turma do Guaíba, projeto de valorização do principal manancial de Porto Alegre.