Sob a triste proteção de uma lona plástica preta Dirceu passou mais uma noite. Nem sempre contou com a lona.
Sobre o gélido, áspero, banco da praça Gomes passou mais uma noite. Sempre conviveu com a solidão e a desconfiança. Gomes não tem um pedaço de lona tampouco cobertor.
Fiquei alguns minutos observando os movimentos de Dirceu sob a lona. Hoje não conversamos. Andei até a praça onde encontraria o Gomes que acordou com a proximidade dos meus nada silenciosos passos sobre o areião.
Esfregou os olhos, sentou-se…
– Bom dia, mais fotos? Sempre encontra personagens novos, não é!
– Bom dia. Quer um café?
– Muito cedo, deve ser o quê, dez e quinze?
Olhei o relógio, Dirceu se enganara por cinco minutos,
– Dez e vinte. E a temperatura?
– Deixa comigo, doze graus.
– Isso mesmo. Não está com fome?
– Daqui a pouco. Já olhou o interior do arroio Dilúvio? Ainda não, então vai até lá, a essa hora deve estar cheio de garças, é muito bonito. Elas conseguem transformar lodo em vida. Aquele lugar é o retrato do nosso comportamento, não lhe parece? Ontem eu vi quando uma mulher abriu a janela do carro e jogou fora um guarda-chuva, ainda deve estar no mesmo lugar. Quem vai querer um guarda-chuva quebrado? Tudo dentro da normalidade, não é?, o homem vive para destruir, o arroio Dilúvio é isso, o retrato da destruição, jogam tudo ali dentro, mas a natureza não se entrega. E ninguém faz nada para defender aquele espaço, aquele pedaço da cidade. Tudo dentro da normalidade, não é? O silêncio é o criatório das vítimas, não lhe parece? Sabe o que faz falta ao Brasil, a esse nosso povinho pacato? Garanto que não sabe, mas vou lhe dar uma oportunidade, vai.
– Consciência política, respeito ao meio ambiente, e…
– Para…para…isso é o óbvio, e se ainda não contamos com isso, a essa altura do campeonato, mais de quinhentos anos, esquece. Sabe o que cairia muito bem aqui? Vulcão. Isso mesmo, vulcão. Aí esse povinho miserável ia viver ameaçado pela natureza e garanto que aprenderia a respeitar. Um vulcão vigiando a cidade é fundamental no processo civilizatório. Agora tô com fome!
– Vem comigo.
– Com esses trajes, meu amigo, não vão me deixar entrar.
– O que você quer?
– Algo quente para beber e um acompanhamento. O que eu quero, o que eu quero mesmo é um cachorro, mas não posso pegar um bichinho e obrigar o coitado a dormir debaixo do banco da praça.
– Quando você quiser me avisa, eu trarei o filhote, deixa comigo.
Segui pela Av. Ipiranga, dois quarteirões adiante outra praça. Doze pessoas, a maioria dormindo, quase onze horas.
O gari se aproxima.
– Fotografar esses vagabundos, puta que pariu! Qual o sentido?
– Sabe por que eles estão dormindo agora?
– Só pode ser porque estão todos chapados, bêbados, um bando de vagabundos, deve ter até ladrão dormindo ali, de noite, estarão espertos, e sairão pra roubar, pode crer.
Não alimentei a conversa. Mas eu sei porque eles dormem durante o dia, aposto que você não sabe. Também não precisa concordar com o gari.
Você já experimentou dormir com fome? Não, claro que não. Na pior das hipóteses encontrará uma banana, um pedaço de pão, e sempre restará o solidário pote dos biscoitos. Você já experimentou dormir com frio? Não, claro que não. Na pior das hipóteses fechará as janelas, também poderá ligar o ar condicionado, acender a lareira, e, com certeza encontrará mais de um edredom em seu quarto.
Pois imagine dormir com fome e frio.
Durante o dia, geralmente o sol aquece, ajuda a dormir. Um inimigo a menos. Não estou afirmando que todos sejam inocentes sob o sol, sempre bom lembrar que a ocasião faz o ladrão, o drogado, também faz o fotógrafo.
Avistei o Marco Aurélio, entornava um garrafão d’água, ainda de olhos fechados, sede afastada, apanhou o que restava de um pacote de biscoitos e ofereceu ao Jair, que correu em direção à solidariedade. Marco Aurélio voltou a dormir.
Um socó, intruso entre as garças, mergulhou nas águas poluídas e voou com um peixe no bico. Viver também é teimosia.
Olhei em direção ao rio Guaíba, palácio da polícia, hospital, sede do maior jornal do estado, shopping center. Tem espaço de sobra para um vulcão. No mínimo um vulcão!