O adeus a Paixão Côrtes, o “pai do tradicionalismo gaúcho”

Paixão Côrtes, que serviu de modelo à estátua do Laçador, ficará eternizado para sempre como símbolo do gaúcho

 

Paixao Cortes Ricardo DuarteAos 91 anos, no dia 27 de agosto, faleceu, em Porto Alegre, João Carlos D’Ávila Paixão Côrtes, deixando uma lacuna no tradicionalismo gaúcho. Gaúcho de coração, tradicionalista de profissão, Paixão Côrtes é o maior expoente do Movimento Tradicionalista Gaúcho, que criou, junto com outros “eternos pais do gauchismo”, há mais de 60 anos. Em 1947, os pioneiros do tradicionalismo criaram o 35 CTG, o primeiro Centro de Tradições Gaúchas, que serviu de modelo para os CTGs que se espalharam pelo Brasil e até por outros países.

Paixão Côrtes está eternizado não só na memória do povo gaúcho, mas também no Monumento ao Laçador, símbolo de Porto Alegre, para o qual serviu de modelo. Em sua obra folclorista, com dezenas de livros escritos, sempre objetivou retratar danças, vestimentas e costumes do povo rio-grandense que estavam sendo “esquecidos” pelas novas gerações. Os textos que deixou para a posteridade constituem a base que inspirou e orientou o tradicionalismo gaúcho nas últimas décadas.    

Em 1997, há mais de 20 anos, o jornalista Gustavo Cruz da Silveira teve o privilégio de entrevistar Paixão Côrtes com exclusividade para O Jornalecão. Em sua casa, em clima de descontração, o tradicionalista falou sobre o movimento iniciado por ele e seus amigos em 1947, além da obra que desenvolveu como forma de preservar a cultura gaúcha e também sobre o futuro do tradicionalismo.


Confira, a seguir, na íntegra, a entrevista realizada com J. C. Paixão Côrtes em outubro de 1997 e
publicada na edição Nº 69 de O Jornalecão

 

O Jornalecão: Em sua opinião, o fortalecimento progressivo do movimento tradicionalista deve continuar?

Paixão Côrtes: Bem, o movimento começou no Piquete da Tradição, em 1947. Nós éramos oito os que o iniciamos. Hoje, são 8 milhões de pessoas, em 40 anos. Acho que não existe, no Brasil, na América do Sul e no mundo, um movimento, diante desta proporção de tempo, de tamanha demonstração coletiva, dentro de uma região, especialmente, que é o Rio Grande do Sul. Então, de oito para 8 milhões… Existem 1.500 CTGs no Rio Grande do Sul, 1.200 em Santa Catarina, 400 no Paraná, 200 no Mato Grosso, e assim vai por este Brasil afora. Além dos Estados Unidos, que conta com dois ou três Centros de Tradições, tem na Europa, no Japão e, agora, estão divulgando lá na Rússia. Então, me parece que é significativo numericamente.

 

O Jornalecão: Atualmente qual sua participação no movimento?

Paixão Cortes: Eu me preocupo em fundamentar e não só festejar. Existe, dentro do movimento, uma preocupação de lazer e recreação, mas, anteriormente a este aspecto, o desenvolvimento do meu trabalho sempre foi pesquisar, analisar, escrever, documentar e, depois, divulgar, através de texto escrito, de discos gravados e do ciclo de palestras e cursos que venho dando. A minha preocupação é oferecer às gerações elementos autóctones, genuínos, para que as pessoas possam ter elementos de análise crítica e cultural, social e campeira.


O Jornalecão: A fundação do 35 CTG foi fundamental para o tradicionalismo?

Paixão Cortes: Sim. Porque foi a primeira entidade fora das paredes do Colégio Júlio de Castilhos. Que tomou foro civil numa sociedade, o que era estudantil no departamento de tradições. Lá no Júlio de Castilhos eu criei a Chama Crioula, o Candeeiro Crioulo, a Semana Farroupilha, o primeiro baile gauchesco, o primeiro concurso de danças, o primeiro concurso de roupas, tudo isto durante a Primeira Ronda Crioula. Em razão do interesse manifestado pelos jovens daquela época. Nós tínhamos entre 16 e 20 anos. Nós fundamos fora o 35 Centro de Tradições, que é a entidade primeira, pioneira e máter, inspirando os hoje 1.500 CTGs do Rio Grande.


O Jornalecão: O senhor busca passar para as gerações gaúchas o retrato de sua história. Esta busca é pioneirismo seu? Quais critérios utiliza para ter maior fidelidade?

Paixão Cortes: A minha preocupação (junto e num primeiro momento com Barbosa Lessa) foi a reconstituição dos temas coreografados. A partir daí, toda a temática folclórica, não tradicionalista tão somente. A pesquisa sob forma de ciência folclórica, buscando, no interior das mais variadas regiões do estado, informantes vivos (com 70, 80, 90 anos), pessoas que vivenciaram a sua infância, que tinham boa memória e nos permitiam reconstituir uma gama enorme, especialmente estes trabalhos que estão condensados, hoje, em 30 livros. São pesquisas, documentações destes aspectos ligados a manifestações populares autóctones, genuínas e que possibilitaram aos tradicionalistas, muitos deles acertadamente, que começassem a multiplicá-los e desenvolvê-los. Outros, que desconhecem as origens, estão deturpando estas manifestações, lamentavelmente, por falta de pesquisa, documentação e desconhecimento cultural.

 

O Jornalecão: Cite exemplos desta deturpação.

Paixão Cortes: A mim não preocupa a deturpação e sim a falta de consciência e de conhecimento da cultura original. A liberdade de cada um e as concepções culturais, sociais e econômicas dão a dimensão que bem entender a cada um. Espera-se a consciência da sua veracidade para que não haja deturpações.


O Jornalecão: O que o senhor acha de ser a figura representada no gaúcho, no Laçador, que é símbolo de Porto Alegre?

Paixão Cortes: Bem, eu tive o privilégio de conviver com o escultor Antônio Caringi e ter posado para esta sua obra magnífica. Porto Alegre era a capital rio-grandense, mas não era a capital gaúcha. Faltava algum símbolo de identidade social, vivo. Porque o gaúcho laçador não está morto. Ele está aí, atuando nos rodeios, na vida pública do meio rural, portanto ele é figura presente. Então, o povo, que elegeu o Laçador como símbolo de Porto Alegre, símbolo da capital gaúcha, parece que retomou a consciência da importância de suas raízes campestres. A mim, coube somente o privilégio de conviver com o escultor, de ter, com minha roupa e meu porte, servido à obra magnífica dele. Mas o importante é a obra do escultor, a estatuária dele, e eu fiquei com um convívio muito amigo e agradável com este grande escultor.


O Jornalecão: Quais os critérios que o senhor utilizou para fazer suas obras? Deve ter havido muitas diferenças nos depoimentos sobre uma mesma dança, por exemplo. Como chegar ao que seria apresentado finalmente?

Paixão Côrtes: Existe uma diferença entre pesquisa científica, quando o folclore exige, dos informantes diversos, para que, depois, você faça um levantamento da predominância informativa, que vai lhe conduzir a um raciocínio em relação aos focos de irradiação e aos ciclos e estágios sociais e culturais, porque não se pega a pessoa isolada, ela está inserida dentro da comunidade, dentro de um contexto. E disto tudo é que nós temos que retirar os elementos fundamentais que vão identificar a época, a roupa, a maneira de vestir, de dançar, de cantar e de executar. É uma questão lenta. Só para ilustrar a tua pergunta: eu levei 44 anos esperando para reconstruir a dança da jardineira. Em 1952, eu a pesquisei e encontrei alguns furos, algumas coisas que não me satisfaziam e, repetitivamente, continuei pesquisando e, agora, no ano passado, encontrei dois informantes que dançaram e que, realmente, além das informações que eu tinha, complementaram a riqueza. Quer dizer: se eu tivesse atropelado os assuntos, seria muito mais fácil inventar ou modificar formas coreográficas, mas estaria pecando com a minha consciência de pesquisador e estaria desvirtuando as fontes informativas originais. Eu não trabalho com pessoa morta, as minhas fontes são todas vivas e as transmito com respeito à nova geração… e espero que esta nova geração tenha dignidade e consciência de preservá-la com fidelidade.


O Jornalecão: E quanto à nítida diferença do brasileiro gaúcho para com os outros brasileiros, que fazemos questão de marcar, o senhor acredita que é saudável?

Paixão Côrtes: Bem, nós temos uma história muito jovem. São 240, 250, 260 anos de vida sócio-cultural, de formação rural, em relação à Bahia, por exemplo, que tem 400, quase 500 anos, desde a descoberta do Brasil. Então, eles têm um potencial de gerações e gerações. Nós estamos aqui nas nascentes gerações do Sul. Então, isto ainda está em efervescência… E a nossa formação também tem etnias diferentes, impactos diferentes, então são dimensões diferentes. Agora, na realidade, nós temos uma história fundamentada, especialmente, na Revolução Farroupilha e nas sequentes outras revoluções que nos distinguem de outras regiões brasileiras marcadamente. Nós somos assim, com nossos defeitos, com nossas virtudes, com esta série de elementos, o que não se verifica em muitas regiões brasileiras, que perderam seus vínculos ou nunca tiveram maior tradição épica e que, por isso, têm permanecido mais na sua vivência espontânea do que aquela de representação simbólica, épica e cívica.


O Jornalecão: Esta diferença traz mais vantagens ou desvantagens?

Paixão Cortes: Eu acho que, pelo menos, identifica as pessoas, as regiões, estabelece perspectivas de ação e reconhecimento de outros que veem nisso uma potencialidade importante no bem-estar social e no intercâmbio entre os irmãos, no sentido de uma paz universal.   

 

O Jornalecão: Qual foi o seu sentimento de repetir o gesto de 50 anos atrás na Chama Crioula deste ano?

Paixão Côrtes: Foi um momento muito solene porque, passado meio século, eu tive a felicidade de reencontrar os mesmos princípios que me fizeram levar a Chama Crioula, o Candeeiro Crioulo, em fim de 47, e, hoje, à participação. Nós éramos três naquele dia. Hoje, cento e tantos homens e as instituições governamentais, os representantes do governador, da prefeitura e dos mais variados órgãos estavam prestigiando. Então, o meu gesto foi uma continuidade de um ponto de vista traçado em 1947, no departamento de tradições do Colégio Júlio de Castilhos, que hoje eu vejo coroado na continuidade dos primeiros três companheiros, depois os oito, e hoje nestes 8 milhões que estão aí a representar o simbolismo da Chama Crioula.


O Jornalecão: Quais são os próximos passos que o senhor pretende realizar com relação ao seu trabalho para a cultura gaúcha?

Paixão Côrtes: Eu estou começando. Estou com 70 anos, mas estou começando agora. Tenho um projeto que venho desenvolvendo há 12 anos com cursos de danças, de roupas e vestuários. Estes também em Santa Catarina, no Mato Grosso e, mesmo, a convite do governo português, nos Açores. Então eu estou dando continuidade, estou revendo todas as pesquisas, que são centenas de horas gravadas em filme, tudo custeado por minhas próprias custas. Nunca recebi contribuição do governo, instituição ou órgão nacional ou internacional. Estou lançando um livro e fazendo mais outros livros, que espero possa terminar para enriquecer a bibliografia de consultas dos temas folclóricos tradicionais. Há muita coisa para fazer, e estou revendo para colocá-las impressas. A dificuldade é contratar quem as imprima com a devida correção.


O Jornalecão: O Grupo dos 8 alcançou seu objetivo inicial?

Paixão Côrtes: Dos oito, nós perdemos apenas um companheiro, João Machado Vieira, de saudosa lembrança. Todos os outros estão vivos, estão aí atuando, participando do movimento tradicionalista, fazendo conferências, andando a cavalo, participando de apresentações. Estamos dando continuidade ao que nos propomos. Não paramos no tempo, nem estamos esperando reconhecimento. Estamos dando continuidade aos nossos princípios. Oxalá o tempo possa avaliar o nosso esforço, a nossa dedicação e a nossa preservação para com a nossa ancestralidade.


O Jornalecão: Como surgiu seu interesse pela cultura gaúcha?

Paixão Côrtes: Eu sou cria de Santana do Livramento, tanto do lado paterno como materno. Eu tenho uma vivência do meio rural. Vivi nas estâncias dos meus avós, dos meus tios e isto fez com que revitalizasse a importância dos temas originais. Do contato que eu tive desde criança e depois na minha atividade profissional como engenheiro agrônomo. Trabalhei 40 anos como técnico da Secretaria da Agricultura, na área de zootecnia, e isto me revitalizou, permanentemente, através dos meus programas e da convivência e de convivência com o homem rural, a importância delas, a preservação dos seus valores e a projeção da sociedade rural.


O Jornalecão: O senhor acredita que existia alguma diferença entre a sociedade rural e a urbana com relação à tradição?

Paixão Côrtes: Antigamente, havia uma separação mais rígida. O que era do interior era grosso, o que era da cidade era uma cola fina. Hoje, já não. Hoje, nas cidades, através dos bares, restaurantes, das casas de diversões, da gastronomia, você vê permanente interligação. E, mesmo muita gente que outrora só vivia no interior na campanha, hoje está ocupando posições relacionadas ao desenvolvimento tecnológico industrial… e eles encontram na tradição uma revitalização às suas origens, ao seu passado. Por isto, existem tantos centros de tradições na cidade. Aqui em Porto Alegre, na primeira região são 120 ou 130 CTGs de diferentes regiões, onde as pessoas, no fim de semana, vão tomar um mate, na convivência rural, na beira do fogo, dançar, se recrear e, ao mesmo tempo, montar a cavalo para reviver seu tempo de jovem.


O Jornalecão: O senhor acredita que o movimento tradicionalista está indo no caminho certo ou deve mudar?

Paixão Côrtes: Quando nós iniciamos o Movimento Tradicionalista, nenhum futurologista podia imaginar esta dimensão que tem hoje, nem existia a concepção de criação de um centro de tradições, que dirá, hoje, 4 mil ou 5 mil centros de tradição. Eu me sinto imponente diante da grandiosidade e da reação do povo, de estabelecer normas para o ano 2001. Acho que o povo é que vai dimensionar o que é dele, vai valorizar a nacionalidade.


O Jornalecão: O senhor gostaria de relatar mais alguma coisa, dar mais uma opinião para os nossos leitores?

Paixão Côrtes: Eu me sinto satisfeito de estar sendo entrevistado por ti, um rapaz jovem, junto com um fotógrafo também jovem. Isto é um grande prêmio que eu acolho na minha casa, depois de tantos anos de trabalho por aí, ver que a nova juventude está, como a minha, questionando os problemas, não está indiferente. Está dizendo “eu estou aqui, e nós estamos presentes, nós queremos saber e nós exigimos uma resposta”. A resposta é o que eu posso oferecer através do meu trabalho.


O Jornalecão: O que o senhor acha do folclore nas escolas como parte do programa de ensino futuro?

Paixão Côrtes: Eu acho muito importante essa decisão do governo, através da Secretaria da Educação, para que seja inserida, nos currículos escolares, matéria ligada à tradição e ao folclore como assessoramento às diferentes disciplinas. Não será uma disciplina específica, mas ela estará inserida neste contexto, de um modo geral, nas outras matérias. Acho salutar e importantíssimo e já em 1954, no primeiro congresso, nós discutimos este tema e chamávamos a atenção à importância das tradições e do folclore e seu aproveitamento nas escolas. Quase 45 anos depois, nós verificamos, já partindo do próprio governo, o equacionamento deste assunto. O que me preocupa é que realmente se faça uma coisa com muita consciência para evitar fantasias e deturpações.