O distanciamento do porto-alegrense em relação ao Guaíba é histórico e possui muitas causas, mas nenhuma pode ser equiparada à poluição, que não permite usufruí-lo diretamente, nem em sua plenitude. Um estudo do engenheiro ambiental Leonardo Capeleto de Andrade revelou que quase metade dos entrevistados não relacionava o Guaíba ao abastecimento de água em Porto Alegre, o que demonstra não apenas a ignorância acerca do que é saneamento básico e como ele funciona, mas, principalmente, como a importância do lago ainda é desprezada. Em algum momento, nos acostumamos a manter distância do Guaíba. Mas a nossa sujeira, não.
Muitas pessoas pensam que a cor achocolatada do Guaíba decorre do fato de suas águas estarem poluídas, mas essa é na verdade a sua coloração natural, devido ao solo, muito rico em ferro, e aos sedimentos trazidos por outros afluentes. Isso significa que, mesmo que estivesse limpo, o Guaíba ainda seria marrom. Então, o problema não é a coloração, mas sim o fato de que o Guaíba está realmente poluído, e não há pouco tempo.
Se não é possível dizer que a história da sua poluição começa com a colonização da região, podemos dizer que ela se intensifica com o desenvolvimento urbano. Quanto mais população se aglomerava às margens do Guaíba, mais havia sujeira sendo despejada em suas águas. Na Porto Alegre do século XIX, a água do Guaíba era usada tanto para despejar as fezes quanto para lavar utensílios (inclusive, roupas dos enfermos infectados do Hospital Santa Casa), tomar banho e beber. Em 1822, o botânico francês Auguste de Saint-Hilaire, após um mês em Porto Alegre, registrou o espanto pelas condições sanitárias na cidade: “(…) as margens da lagoa são entulhadas de sujeira; os habitantes só bebem água da lagoa e, continuamente, veem-se negros encher seus cântaros no mesmo lugar em que os outros acabam de lavar as mais emporcalhadas vasilhas”.
Somente em 1855, após epidemia de cólera que matou cerca de 10% da população local, ficou óbvio que não era possível usar a mesma água para higiene e consumo. As primeiras soluções encontradas apenas adiavam o problema: coletar a água e despejar os dejetos em pontos mais distantes. Somente em 1861, foi criada a Companhia Hydraulica Guahybense e, em 1866, a Hidráulica Porto-Alegrense (que vieram a se tornar o atual Departamento Municipal de Água e Esgotos (DMAE) -, mas apenas para cuidar da coleta e da distribuição da água. Até 1912, com a finalização da obra de construção de 51 mil metros subterrâneos para o primeiro trecho do sistema de esgotos da cidade, a questão dos dejetos ficava por conta apenas dos cubeiros, nome dado aos encarregados de recolher as cubas cheias de excrementos da população e despejar no Guaíba – em locais como a Ponta do Dionísio (onde hoje funciona o Clube Veleiros do Sul) e a Ponta do Melo (antigo Estaleiro Só).
O que polui o Guaíba hoje?
Com uma região hidrográfica imensa, que compreende cerca de 30% do estado, a poluição do Guaíba não vem apenas de Porto Alegre, mas de outras cidades e de seus afluentes também. Os estudos de Andrade não determinam exatamente quando o Guaíba começa a ser poluído, mas concluem que ele já estava poluído em 1820, devido ao processo de urbanização de Porto Alegre, que impulsionou o despejo de esgotos, drenagem urbana e indústrias no lago. Atualmente, existem dois tipos de poluição no Guaíba: a orgânica, causada por esgotos (envolvendo elementos químicos como Carbono, Nitrogênio e Fósforo), e a inorgânica, causada pela poluição industrial (que diz respeito a metais, muitos deles altamente tóxicos, como Zinco, Cobre, Chumbo, Níquel e Mercúrio). A diferença é que, enquanto a poluição orgânica tem a capacidade de se degradar naturalmente com o tempo, a poluição industrial fica presente por muitos anos. Substâncias pesadas como o Cromo, resquícios dos tempos de alta da indústria calçadista, ainda podem ser encontradas nos sedimentos do Guaíba, por exemplo.
Embora a poluição industrial seja de difícil tratamento, as indústrias são obrigadas por lei a gerenciar seus resíduos, inclusive hídricos, de forma que já existem leis que regem a fiscalização desse tipo de poluição. Já a sujeira gerada por esgotos, embora possa se degradar naturalmente, tem o risco de se espalhar mais facilmente e de ser mais difícil de ser fiscalizada. Por carregar Carbono, um elemento que se liga a outros poluentes, o esgoto forma plumas de contaminação que fluem pelos arroios – como é bastante visível no Dilúvio, o arroio mais extenso e poluído da capital gaúcha.
Aliás, o Arroio Dilúvio pode ser reconhecido não apenas como um grande canal que leva tanto esgoto pluvial como doméstico para o Guaíba, mas, também, por carregar Zinco, Cobre e Cádmio, elementos encontrados em pneus e freios. Os estudos do engenheiro ambiental revelaram a ascensão dessas perigosas substâncias no lago, o que nos permite supor que sejam oriundas dos veículos que percorrem as vias paralelas ao Dilúvio durante grande parte de sua extensão, arrastando toda a sujeira e levando diretamente para o Guaíba. Este tipo de poluição, antes restrita à indústria, agora também faz parte da poluição urbana, que, sempre que for mal gerenciada, vai ter como destino, invariavelmente, o Guaíba.
Como melhorar?
A poluição no Guaíba tem muitas fontes, o que torna a sua recuperação complexa, envolvendo até mesmo o transporte público. Mas o foco mais antigo e mais presente ainda é o esgoto. Com o Programa Integrado Socioambiental (PISA), inaugurado em abril de 2014, foram construídas uma Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) no bairro Serraria, preparada para receber o esgoto de vários bairros (do Centro Histórico à Restinga) através de mais de 136 km de redes coletoras, oito estações de bombeamento e quatro chaminés de equilíbrio, ligando 10.300 residências ao sistema. Com o PISA, a promessa era elevar a capacidade de tratamento de esgoto de Porto Alegre para 80%.
No entanto, atualmente apenas 60% dessa capacidade é utilizada, porque a rede coletora ainda não é suficiente para levar toda a quantidade de esgoto que a ETE Serraria poderia tratar. O resultado é que 44% do esgoto doméstico de Porto Alegre ainda vai todo para o Guaíba, com apenas cerca de 100 km de rede coletoras integradas ao sistema nos últimos anos. Antes do PISA, Porto Alegre tratava apenas 27% de seu esgoto, o que, apesar de aquém do ideal para recuperar o Guaíba, que não pode ser nada menos do que 100% do esgoto doméstico tratado, demonstra avanços significativos.
Olhando em perspectiva, alguns fatos do passado, como descarregar as próprias fezes em baldes dentro do Guaíba e depois voltar lá para buscar água para beber e se limpar, parecem muito distantes do presente. No entanto, em todo este tempo, só modernizamos a forma, porque a realidade permanece a mesma: Porto Alegre ainda é uma cidade que despeja seus dejetos (intermediados por tubulações de esgoto) no mesmo lago do qual depende para ter água (através de um sistema de tratamento e distribuição). Com o agravante de que agora são muito mais pessoas dependendo tanto da água quanto gerando sujeira. Neste tempo todo que dependemos do Guaíba e não aprendemos a preservá-lo, fomos silenciosa e gradualmente nos acostumando à distância histórica, efetiva e afetiva, que se construiu entre o porto-alegrense e o seu principal manancial.