Pegaram os dois, Luís, os dois, de qualquer jeito, e botaram no mesmo saco. Aqueles sacos pretos de plástico, sabe? O Batista era um traço, e a Nara, coitada, aquela tuberculose que ela não se preocupava em curar, como sofria a cada inverno, difícil saber qual dos dois era o mais magro. E usavam crack, Luís, muito crack, tudo que ganhavam consumiam com crack. Felizmente a irmã dela pegou a criança, e depois regularizou na justiça, já pensou se tivesse deixado com a Nara, que tristeza!
Não sei pra onde levaram, onde enterraram, perguntei, mas um dos caras que jogou os corpos naquele carro do IML…
-São teus parentes? Então cuida da tua vida miserável. Assim o filho da puta respondeu. Não fiquei zangado com ele, acho que a profissão dele já é uma bronca permanente. São os funcionários da amargura.
Fiquei olhando porque eu sei que amanhã ou depois serei eu dentro daquele saco, não quero esse desrespeito com meu corpo, Luís. Sabe aquele teu cartão? Está sempre no meu bolso, faz dias que estou pra te pedir outros, pois quando da minha morte espero que eles encontrem teu cartão comigo, e… “por que esse cara tem tantos cartões desse Luís, serão parentes?” Quero que eles pensem isso e te chamem. É verdade, sou bem mais novo, em maio completarei trinta e seis anos, mas cada inverno vivendo na rua representam mais cinco anos nas costas, e faz oito anos que sobrevivo desse jeito. Não dá mais, querido, tentei, o problema nem é o crack, a maconha, a cachaça, o grande problema é o ser humano. Quando a dona Nice, tu sabes de quem estou falando, conseguiu tudo aquilo pra mim, lá se vão quase três anos, no dia em que me apresentei ao dono da fruteira o cara veio com uma folha de papel ofício repleta de regras. De uma hora pra outra, Luís, impossível. Nenhum tipo de solidariedade, compreensão, voltei pro lugar onde eu estava, não me achei no direito de morar na casa que ela tinha alugado pra mim. Eu, assim como qualquer um que viva na rua e tente voltar à sociedade, precisa de um período de readaptação. Nos tratam feito animais perigosos e de uma hora pra outra devemos nos transformar em pessoas de finos modos. Impossível…impossível. E tu conheces alguém, não me refiro a ti, ao Levy, a dona Vera e alguns outros; conheces alguém que tenha consideração com a gente? Duvido.
Sei que é difícil respeitar o corpo morto de alguém que não teve o menor respeito quando vivo. Penso muito na minha morte, Luís, pra ser sincero, sincero mesmo, eu gostaria de mudar de vida pra morrer tranquilo. Deveríamos morrer, todos nós, com dignidade. O Batista e a Nara não podiam ter morrido daquele jeito. A morte não acabou com a humilhação. Não duvido que tenham jogado os dois na mesma cova rasa. O quê? Tu não conheces o ser humano! É isso, querido, só isso. Sinto saudade do Batista e da Nara, mesmo que não pudesse contar com a participação dela, vivia chapada, mas eu sabia do carinho que sentia por mim. O Batista era meu irmão, cara, meu irmão. Lembra aquela vez que tu nos fotografastes, sentados naquela ponte da Ipiranga, a foto estava naquela tua exposição, a da UFRGS, ele ficou muito contente, se sentia importante. Disse que talvez a miséria fizesse sentido, “estamos em todos os lugares e ao mesmo tempo conseguimos ser o nada, é preciso mudar isso”. Nunca esqueci, ele adorava as tuas fotografias. Outra dele; “o importante é percebemos a diferença entre a arte pra parede e a arte comprometida com a vida”. Ninguém colocará tuas fotos na parede, Luís, mas talvez a importância esteja justamente aí. Quando tu vais trazer os cobertores? Já está fazendo frio. Dentro de casa tu não percebe, mas já está bem frio. De março até outubro, na rua, não existe noite quente. Mas vamos voltar às tuas fotografias, às nossas fotografias, eu olho pra elas e me vem o seguinte; fotografia da decepção. Essas fotos não te decepcionam? Aí precisamos acertar o foco: não é a foto, a técnica, mas o que ela documenta, a decepção com a humanidade. Nós, os da rua, não somos frutos da injustiça, quero deixar bem claro, alguns quem sabe…, muitos são resultado das drogas, mas tem muito do egoísmo, do descaso do Estado, do preconceito, em cada um de nós. Tuas fotos carregam tudo isso, é muita responsabilidade, querido. A fotografia como decepção, anota pra não esquecer, não te parece um bom título pra uma exposição?
Lembra que logo que te conheci tivemos uma discussão? Tu estavas fotografando um cara que empurrava dois carrinhos e levava um cachorro, lembra? Cheguei cheio de autoridade e disse que tu estavas te aproveitando da miséria dele pra se promover. Fui muito idiota! O homem dos carrinhos veio pra cima de mim e só não me bateu porque tu não permitiste. Foi ele que me disse o que tu fazias, sinto vergonha até hoje. Mas a fotografia, a fotografia do povo da rua, é como um documento que evitamos apresentar. Aí que entra a decepção. A gente está numa outra realidade, Luís, quer ver? Se chegar alguém aqui e pedir permissão pra te fotografar, antes de ser fotografado tu olharias tua roupa, ajeitaria os cabelos, é ou não é? E nós, os da rua? Não temos o que ajeitar, é nossa miséria que justifica tuas fotografias, estou certo? Isso independe do objetivo do fotógrafo, seremos os mesmos independente da intenção do fotógrafo. O importante, desculpe minha ignorância, é a questão emocional. Quando se fala em emoção algumas pessoas nos desqualificam, tratam emoção como característica dos ingênuos, não te parece? Acho que é uma questão psicológica, intelectual, quem sabe…Acho que não fui claro, também não precisa, deixa pra lá. O importante é isso, a fotografia como decepção, e o que gera a decepção? Como não sabe, Luís? É a emoção, cara, a emoção. O insensível sequer nos percebe, somos coisas simplesmente.
Gosto das tuas fotos, resultado da tua ação, porque causam efeitos. Isso é arte, meu querido. Quase esqueço, desde a última vez que estivestes aqui estou com isso na cabeça. Naquele dia escutei tua conversa ao telefone, me diz se captei corretamente: no teu livro novo uma das personagens mais importantes é uma moradora de rua, é isso mesmo?
-Todo personagem é importante. – E não vou ganhar um exemplar? Luís, sou obrigado a me repetir, quase ninguém se interessa por nós, muitos evitam atém mesmo olhar, mas quando nos tornamos fotografias aí passamos a ser curiosidade. É mais interessante admitir a realidade pelo olhar da arte? Talvez a resposta tenha a ver com responsabilidade, pode ser. A fotografia exime espectador da responsabilidade. Surpreso? Querido, morador de rua também